de uma obra depende tanto de quem a lê ― e para nossa desgraça não há como 'descartar' a nefasta influência que sobre a mole exerce "a catedralicada e eruditância deste mundo como um bando de azêmolas empenhadas em justificar-se à força de fichas" * ― quanto de quem a escreve. Há livros que soariam como as trombetas de Jericó se as pessoas os elevassem ao ar e lhes soprassem. É o caso da estória anexa - o valor ínsito fica por conta de quem o lê.
A crise intelectual que enfrentamos não deve ser atribuída à nossa dúvida na força da razão, mas ao facto de o seu alcance permanecer insignificante ― e a prová-lo está que a quantidade de pessoas é mais decisiva do que a qualidade das verdades. Até concedo que dispunhamos de boa 'matéria-prima' ― o probleminha é que continuamos sem saber o que fabricar com ela.
Obs.: aproveito para dizer que o meu 'sentimento' relativamente a essa 'catedrálica eruditância' porém medíocre, que enxameia o espaço público 'convencida da sua importância no mundo de entre Melgaço e V.R. de Sto. António'' - G. Oliveira Martins, Manuel S. Fonseca, António Araújo, V. Soromenho Marques, J. Pacheco Pereira, Tolentino Mendonça e outras 'coisinhas' bem mais liliputeanas como R. Araújo Pereira, José Luis Peixoto, Walter Hugo da mãe, Inês Pedrosa, Hélia Correia, ... está descrito com precisão no que René Char, citado por Marina Perezagua em «Seis formas de morrer no Texas», um dia, escreveu
"Ceux qui regardent souffrir le lion dans sa cage pourrissent dans la mémoire du lion"
Quem leu Jorge Luis Borges ― quem leu J. Luis Borges? ― depara, em «El Hacedor», com esta imaginada, brevíssima e ainda mais profunda estória que ― ouço-os ― 'a mediocridade que vive convencida da sua importância no mundo de entre Melgaço e Vila Real de Santo António' etiquetará de «desimportante» e «datada». O que é uma obra datada? Será, imensas vezes, o que passa sem etiquetagem da 'catedrálica eruditância de um bando de azêmolas' cujo fardo intelectual lhes acaba por esmagar a sensibilidade e a intuição. Ou pior! É que não é acaso o facto de ainda nos dias de hoje faltar quem suscite dúvidas sobre instrumentos/'ferramentas' e utilizadores entenda-se, «o homem, a ciência e a técnica». Assunto que cheguei a supor dilucidado, esclarecido, mas não - apesar de Spengler, Meneghetti, Heidegger, Max Eyth **, Leopold Ziegler ***, Theodor Litt ****...
Não lamentem pois, no presente, as redes sociais, a IA, ... Da mesma forma que, no passado próximo, não deviam ter lamentado a 'ciência nuclear' e as suas consequências. Optem por lastimar uso dado às ferramentas (quaisquer ferramentas - do martelo a... uma drageia de Medipax) pela esterqueira bípede, erecta e 'racional' que frequenta o monturo. No que me respeita ainda hoje eu questiono a imoralidade ou amoralidade da «rosa de Hiroxima»!
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* carta de Jorge de Sena para Eduardo Lourenço, Janeiro de 1972
** "técnica é tudo o que dá forma corporal á vontade humana"
*** "na epoca estonteante do capitalismo (rasura de minha responsabilidade) a técnica converteu-se em serva da economia"
**** "a técnica é a prática de aplicar os meios; a tecnologia é a teoria dos meios que hão-de aplicar-se ao serviço ..., mas o meio é de valor indiferente - a sua natureza reside em ser utilizado e em servir um fim que se encontra fora dele" (1953)