18/04/2020

Gerberas e crisântemos para um, cardos para o outro

Em dias consecutivos faleceram Luís Sepúlveda e Rubem Fonseca. Ambos latino-americanos - um chileno, o outro brasileiro. O chileno era vizinho e, a convite, visitava-nos muitas vezes; o brasileiro era filho de portugueses daqueles trasmonteses coitadinhos de antanho e é quanto basta.

De Sepúlveda, li e possuo «As rosas de Atacama» e «A sombra do que fomos» e desmereceu reduzir o espaço vago na biblioteca; de Rubem, li e tenho «Secreções, Excreções e Desatinos» e «Ela e outras mulheres» e não outorgou opção diferente. Presumo que, literariamente falando, ambos tiveram méritos nada que os guindasse acima da mediania, ou seja, os fizesse grandes escritores, mas… A diferença entre os talentos e a qualidade da arte de ambos, se existe, é imperceptível. Foram vulgares, ambos, que lograram ver editados livros de sua autoria. Não foram as ‘musas’ as mesmas nem a fortiori as parcas — a circunstancialidade de ambos e um olfacto mais apurado na detecção do ‘aroma do tempo’ inscreveram o resto.

E foi somente isso que determinou que, a comoção incontida, as gerberas e os crisântemos, fossem para ataviar a memória de Luis Sepúlveda e os cardos, leia-se descaso, para ornar a de Rubem Fonseca.
É que Luis Sepúlveda foi serviçal de S. Allende e, derrotado, jamais largou o esqueleto e o espectro, e Rubem Fonseca foi apoiante ou não o verberou! do «Golpe de 64»; Luis Sepúlveda fugiu e fez, da ‘evangelização’ bem comida e bem bebida, vida, e Rubem Fonseca contentou-se com a sua brasilidade e as tortuosidades brasileiras.

12/04/2020

Uma gota de água vulnerária


Passam os dias, as semanas, entre notas relacionadas com a vida política e as que me interessam na maioria das vezes por inércia, e noutras por opção, permanecem como o ataúde de Maomé. É a vitória da prevalente sofística, que envelhece durante o dia para rejuvenescer na manhã seguinte, alimentada pelo sangue dos émulos que nela vão desembarcando. O critério é «a união dos muitos contra os poucos» o paraíso da dialéctica fácil, o éden da silogística, da inversão, da confusão e da mistificação; não é a inteligência, é a bruteza.
A sofística é, sempre foi, o atoleiro feraz da incultura; e a contemporânea organizada do modo que mais lhe convém ou seja, desorganizada [os palermas doutos em termodinâmica esfregam o ego, satisfeitos, designando-a «entrópica»] é a comunicação intelectualóide circunscrita a um sistema de trincheiras em que, cada vez mais, as hordas passeiam a sua suficiência pela «terra de ninguém».

É impensável lutar contra a sofística porque fazê-lo é disponibilizar-se para desfiar as meadas que Penélope enleou. O trágico — é o meu convencimento — é que uma pessoa inteligente não luta contra isso porque de duas, uma: ou colabora e entra no jogo, ou se prepara para a exoneração, voluntária. É o enésimo triunfo da sofística em relação aos transactos, o presente é irrestrito e amplíssimo.

Um dia destes para um amigo, em nota reservada, fiz minhas as palavras de Wittgenstein para Paul Engelmann (1925) — “Não me sinto bem, e não é porque me incomode a minha porcaria, mas é por estar no interior da porcaria.
É que fazer aterragens suportáveis no solo da factualidade exige que se apreendam as ‘coisas’ tal como elas são e se realizem os inevitáveis actos vitais sem afundar ainda mais na porcaria. É o preço a suportar por não ‘descer das áridas alturas da inteligência para os verdes vales da estupidez.é muito difícil e desmerece o ‘custo da oportunidade’.

Não há exemplo mais eloquente escrevo mesmo, magníloquo, do que a «rede social» chame-se ela Facebook, Twitter, Instagram, … Eis um de milhões brevíssimo exemplo, fresquinho, entre ‘um senhor que desconheço, comum, mas não parvo’ e uma individualidade ‘cabeça-de-cartaz, muito frequentado’
O comum — O socialismo acaba quando se acaba o dinheiro, e neste caso isso está prestes a acontecer.
Cabeça-de-cartaz — Isso é a sua perspectiva, naturalmente aplicável às sociedades capitalistas, que é o nosso caso!
O comum — Eu tenho um defeitoescrevo sempre a minha perspectiva.
[Obs.: Não pasme, a ‘cabeça-de-cartaz’ não ficou envergonhado; a opulenta e fecunda pulsão argumentativa não quedou por isso]