Em
janeiro de 2022, quando os juros das Obrigações do Tesouro (OT) a 10 anos dos
Estados Unidos ainda rondavam 1% e os das Bunds alemãs na mesma maturidade eram
de 0,5%, adverti que a inflação afectaria tanto as ações como as obrigações. A
inflação mais elevada conduziria a um aumento das “yields” da dívida, o que,
por sua vez, penalizaria as acções à medida que o factor de desconto dos
dividendos fosse aumentando. No entanto, ao mesmo tempo, os juros mais elevados
das obrigações – um activo considerado “seguro” – implicariam também uma queda
do seu preço, devido à relação inversa entre as “yields” e o preço das
obrigações.
Este
princípio de base – conhecido como “risco de duração” – parece ter sido
esquecido por muitos banqueiros, investidores em obrigações e reguladores da
banca. À medida que o aumento da inflação em 2022 foi levando a uma subida dos
juros da dívida, as OT a 10 anos perderam mais valor (caíram 20%) do que o
índice S&P 500 (que recuou 15%) e quem quer que detivesse dívida de longa
duração denominada em dólares ou euros é que teve de arcar com as consequências.
E as consequências, para estes investidores, foram severas. Em finais de 2022,
as perdas não realizadas [isto é, que ficam em suspenso no balanço] dos bancos
norte-americanos com dívida soberana dos EUA ascenderam a 620 mil milhões de
dólares, o que correspondeu a cerca de 28% do seu capital total (2,2 biliões de
dólares). Para
piorar as coisas, o aumento das taxas de juro também reduziu o valor de mercado
de outros activos dos bancos.
Se um indivíduo contrair um crédito bancário a 10
anos quando as taxas de juro de longo prazo estão em torno de 1% e depois esses
juros subirem para 3,5%, o real valor desse empréstimo (o que outra pessoa no
mercado pagaria por ele) diminuirá. Tendo isso em conta, as perdas não
realizadas dos bancos norte-americanos ascendem actualmente a 1,75 biliões de
dólares – ou 80% do seu capital.
A
natureza “não realizada” destas perdas é um mero artefacto do actual regime
regulatório, que permite que os bancos avaliem os títulos e empréstimos pelo
seu valor facial em vez de os avaliarem pelo seu verdadeiro valor de mercado.
Com efeito, a julgar pela qualidade do seu capital, a maioria dos bancos
norte-americanos está, tecnicamente, perto da insolvência – e centenas deles
estão já totalmente insolventes. É certo que a subida da inflação reduz o valor
real dos passivos (depósitos) dos bancos, ao elevar o seu “deposit franchise”*,
um activo que não está nos seus balanços. Atendendo a que os bancos ainda estão
a pagar em torno de 0% pela maioria dos seus depósitos, apesar de as taxas a um
dia do mercado monetário terem subido para 4% ou mais, o valor deste activo
aumenta quando as taxas de juro estão mais altas. De facto, algumas estimativas
apontam para que o aumento das taxas de juro nos EUA tenha elevado o valor
total dos “deposit franchises” dos bancos norte-americanos em cerca de 1,75
biliões de dólares.
Mas
este activo só existe se os depósitos permanecerem nos bancos à medida que as
taxas de juro sobem, e bem sabemos – das experiências com o Silicon Valley Bank
e com outros bancos regionais dos EUA – que essa permanência está longe de
estar assegurada.
Se os depositantes fugirem, o “deposit franchise” desaparece
e as perdas não realizadas sobre os títulos vão sendo realizadas conforme os
bancos os vendem para atenderem às exigências da retirada de dinheiro pelos
clientes. É nessa altura que a falência se torna inevitável.
Além
disso, o argumento do “deposit franchise” assume que a maioria dos depositantes
são tolos e que manterão o seu dinheiro em contas que rendem cerca de 0% de juros
quando poderiam estar a receber 4% ou mais em fundos totalmente seguros do
mercado monetário que investem em dívida soberana de curto prazo. Mas, uma vez
mais, sabemos agora que os depositantes não são assim tão complacentes. A actual
(e aparentemente persistente) fuga dos depósitos não segurados – e até mesmo os
que estão abrangidos por garantias – está, muito provavelmente, a ocorrer tanto
pela procura (por parte dos depositantes) de retornos mais elevados como pelos
receios desses mesmos depositantes em torno da segurança dos seus depósitos.
Em
suma, depois de não ter sido um factor nos últimos 15 anos – desde que as taxas
de juro de curto prazo caíram para perto de zero, no âmbito da política
monetária dos bancos centrais, na sequência da crise financeira global de 2008
–, a sensibilidade dos depósitos às taxas de juro voltou à tona. Os bancos
assumiram um risco de duração altamente previsível porque queriam engordar as
suas margens de juro líquidas. Eles aproveitaram o facto de que, apesar de os
encargos de capital sobre as obrigações soberanas e os títulos endossados a
hipotecas serem nulos, as perdas sobre esses activos não tinham de ser avaliadas
a preços de mercado. Para cúmulo, os reguladores nem sequer submeteram os
bancos a testes de stress para verem de que forma se comportariam num cenário
de forte subida dos juros directores.
Agora
que o castelo de cartas se está a desmoronar, a contração do crédito provocada
pelo actual stress na banca levará a uma aterragem mais difícil para a economia
real, devido ao papel fundamental que os bancos regionais desempenham no
financiamento de pequenas e médias empresas e das famílias. Por isso, os bancos
centrais não estão perante um dilema, mas sim perante um trilema.
Devido aos
recentes choques negativos da oferta global – como a pandemia e a guerra na
Ucrânia –, alcançar a estabilidade dos preços através do aumento dos juros
directores era uma medida que estava destinada a elevar o risco de uma aterragem
difícil (recessão e aumento do desemprego). Contudo, tal como tenho vindo a
dizer há mais de um ano, este complicado “trade off” comporta igualmente o
risco adicional de uma grave instabilidade financeira.
Quem
contraiu empréstimos confronta-se agora com a subida das taxas de juro – e,
consequentemente, com custos de capital muito mais elevados – sobre novos
créditos e sobre os passivos existentes que venceram e têm de ser renegociados.
Mas o aumento das taxas de juro no longo prazo está também a provocar avultadas
perdas para os credores com activos de longa duração. Em resultado disso, a
economia está a cair numa “armadilha da dívida”, com os elevados défices e
dívidas públicas a levarem a uma “dominância orçamental” sobre a política
monetária, e em que o elevado endividamento privado está a provocar uma
“dominância financeira” sobre as autoridades monetárias e regulatórias.
Tal
como venho a dizer há muito tempo, é provável que os bancos centrais que se
confrontam com este trilema recuem (limitando a normalização da política
monetária) para evitarem uma crise económica e financeira auto-reforçada, o que
preparará o terreno para uma desancoragem das expectativas para a inflação no
tempo.
Os bancos centrais não devem cair na ilusão de pensar que ainda podem
alcançar simultaneamente a estabilidade dos preços e a estabilidade financeira
através de uma espécie de princípio de separação (subirem os juros directores
para combater a inflação e, ao mesmo tempo, injectarem liquidez para manter a
estabilidade financeira). Numa armadilha da dívida, as taxas directoras mais
elevadas alimentarão crises sistémicas da dívida que o apoio à liquidez será
insuficiente para resolver.
Os
bancos centrais também não podem partir do princípio de que a próxima crise do
crédito matará a inflação ao conter a procura agregada. Feitas as contas, os choques
negativos da oferta global persistem e os mercados de trabalho continuam muito
limitados. Uma forte recessão é a única coisa que pode moderar a inflação dos
preços e salários, mas isso agravará ainda mais a crise da dívida – o que, por
sua vez, alimentará uma desaceleração económica mais profunda. Atendendo a que
o apoio à liquidez não pode evitar este infernal ciclo sistémico, todos devem
preparar-se para a crise da dívida estagflacionista que aí vem.
* “deposit franchise”, como explicado pelo
BCE, é o valor - para um banco – de ter uma base de depósitos que lhe rende uma
margem de juro; isto porque os juros que o banco paga sobre os depósitos estão
abaixo dos de mercado.
. Nouriel Roubini in Project Syndicate