20/12/2024

Ver e notar de Portugal o desconforto *

O (nosso) problema estrutural é CARÁCTER. É comum ― tão comum que me causa asco ― ouvir e ler da autoria de uma série de personagens muito bem informadas, superiormente formadas técnica e/ou cientificamente, socialmente diligentes como poucos, … que este, aquele e aqueloutro problema(s) é estrutural. É assim na saúde, na justiça, no ensino, ... Sempre replico ― sem perder a noção de que confrontá-los ou afrontá-los, é fazer algo semelhante a uma apostasia numa teocracia ―, que o nosso problema estrutural é de tal amplitude e tamanha magnitude que, em tese, é irresolúvel. Corre(-nos) no sangue! (e contra isto não há inconformismo que valha).
O desiderato não é a formatação das instituições, nem as molduras políticas e jurídicas do sistema, não está na débil e medíocre instrução dos mais directamente interessados – o 'mundo' e a clarividência dos 'urbanos', neste âmbito, vale o mesmo que a ausência de perspicácia e a farronquice dos ‘provincianos’. O problema é o nosso carácter, comum! Não há remédio a prescrever; o remédio está na forma como «cada um percepciona as distorções, gere as aberrações, e decide conviver com elas» **
Nada é novo nesta matéria e/ou nas correlatas ― o que os alumiados, polímatos e industriados dizem novo, é velho e relho. Em 1972, Jorge de Sena ‘epistolografou’ para Eduardo Lourenço
o que temos é uma colecção de medíocres. Não vale a pena. Portugal é isso, será sempre isso, e as gerações sucedem-se cada uma mais canalha que a outra. Portugal é a bosta da vaca a cujo calor nascemos e medrámos. (…) os maus hábitos do passado continuam vivos (…) ninguém dá por nada (…) aparecem, juntam-se, reclamam-se, parecem todos e só são alguns.
Calhou andar a ler um interessante livro, publicado em 1926, da autoria de Júlio Ferreira Pinto, prefaciado por Ferreira do Amaral (ten. cor.) onde, em «Notas e Comentários», se lê
hoje em dia as coisas andam tão fora deles, que os competentes se afastam cheios de desgosto e indiferença, cedendo os seus lugares aos audaciosos, aventureiros e ignorantes (…) ocupados em amparar os partidários que escorregam mas que nunca chegam a estatelar-se porque ao contrário de toda a gente, quando tal acontece, nunca é por falta de patriotismo, fé republicana, e boas intenções (…) O que é muito difícil, quando não impossível, é conseguir-se que haja juízo, bom senso, seriedade e vontade de trabalhar para recuperar o tempo perdido, muito principalmente nos meios políticos, onde reinam a incompetência e os expedientes em tudo que diz respeito à administração pública. Isso, sim, é que é difícil obter-se.”
É imprescindível não ignorar que somos campeões nas adversativas (ora conjunções, ora advérbios) ― «mas», «porém», ... ― e mestres da condicional ― «se». Mais: comummente a adversativa é usada não como método de aferição de verdade-erro, plausibilidade ou exequibilidade, mas como antecâmara verborreica para dissimulação da nossa genuína incompatibilidade com as «margens» (os efeitos marginais). O uso da condicional quase sempre sinaliza o início de um trilho retórico que os propositores esgrimem sem a mínima intenção de trilhar.
No caso informado (ver anexo) escolha as designações apropriadas amiguismo, laxismo, irresponsabilidade, esperteza, nepotismo, endogamia, …, de alto a baixo, a montante e a jusante. Ou seja: no que a procuradora, por anos, conseguiu «fazer que fazia», na fiabilidade da notação profissional, na competência e esmero dos inspectores, na justiça implacável dos pares, no censo de justiça dos juízes do Supremo, na esperteza estratégica dos defensores da ré, na plasticidade caracterial com que a sociedade digere toda esta «porcaria». E sem afrontamentos conhecidos!


Convém actualizar e precisar as noções de «personalidade» e «carácter» até porque o comum é uma enorme confusão entre uma coisa e a outra. Haverá com toda a certeza muito ‘patife’ (designá-los como?) que. ao ler isto, verberá-lo-á com a execração «generalização» - é a censura estrutural, ou melhor: estruturante.

* “ver e notar do mundo o desconforto”, (Luís Vaz de) Camões

** sociologicamente é multiplicar o factor - «cada um percepciona as distorções, gere as aberrações, e decide conviver com elas» - por (n-1). Deixa de ter uma percepção para obter uma fotografia com pixelagem empírica


Adenda
Pelo menos façam de conta. Façam de conta, e nós ficamos bem.