04/04/2022

Anatomia da comoção

Se qualquer um tem o direito a expor o ‘trauma’, acho-me no dever de dizer ‒ e qual ‒ a minha repugnância.
                                                                                     ~ • ~ 
As fotografias não são do Afeganistão, do Iraque ao tempo do Estado islâmico, nem de Srebrenica na Bósnia-Herzegovina. De onde nos chegam todos sabemos.
Aquelas não reverberaram por aí além no seio dos ‘civilizados’ porque, enfim, eram as incisões da temeridade de boçais amestrados, retratos de actos praticados por selvagens e, se há ‘coisa’ que os ‘civilizados’ possuem, é a exacta medida para não alimentar falsas expectativas ‒ ou seja, a boa expectativa é, cedo ou tarde, o pior; estas (pelo que ouço/leio) deixam um profundo sulco de repulsa nos ‘civilizados’.
Estão chocados, não há bicho-careta que não se diga chocado.
Ora o ‘choque’, que aquelas me causaram e me causam estas, é semelhante – não é igual porque jamais usei óculos cor-de-rosa e, como escreveu Vergílio Ferreira (1945), “com óculos cor-de-rosa só se vê o mundo cor-de-rosa enquanto dura a lembrança do outro do que o não era; ao fim de pouco tempo com óculos cor-de-rosa, a cor-de-rosa não existe”.
Digo que o meu choque ‒ no meio de tanta indignação e choque ‒ não faz oscilar, em um mícron, a agulha do sismógrafo. Mas o refinamento da manha, a cobardia dissimulada, a perfídia e a nequícia, …tudo o que compõe este «quantificador universal», leia-se, o mais requintado farisaísmo e a mais acrisolada hipocrisia, agora mais do que sempre, causa-me uma apreciável sucussão. 
                                                                                     ~ • ~
No dia em que o cúmulo dos ‘choques’, consequentes indignações e traumas ‒ políticos ou não, institucionais ou quaisquer outros, de Vladivostok a Santiago do Chile, de Cape Town a Rovaniemi ‒ conseguirem levar Vladimir Putin e os verdugos a sentarem-se no ‘banco’ para serem sentenciados, à semelhança de Milosevic e Mladic, eu retrato-me.


 

                      

 

27/03/2022

Daqui não saio, daqui ninguém nos tira

“Estou pronto para a assumir uma opinião que não está de acordo com a da maioria. É fácil criticarem-nos, mas actuamos pelos civis”; “é inútil colocar as pessoas umas contra as outras. O mais importante é preservar os funcionários e assegurarmos a nossa missão primária - alimentar as populações destes dois países. Nunca tivemos outro objectivo”; “todos os dias fazemos pão para os ucranianos e para os russos”; “acreditamos que podemos contribuir em tempos de inflação para proteger o poder de compra dos habitantes (…) se o Auchan sai, privaremos 30 mil funcionários dos seus salários - 40% deles são funcionários e accionistas”

 alegou Yves Claude, líder do grupo francês Auchan.

Evidentemente que, Yves Claude, está carregado de boas razões e a racionalidade do que profere é inatacável; o mesmo sucederia se, Yves Claude, tivesse proferido ponto-por-ponto uma alegação oposta para justificar a saída ou suspensão da actividade do grupo na Rússia.
Por aí não vamos lá: as pessoas e as nações possuem virtudes distintas e defeitos idênticos.
Coloco o assunto neste pé porque o verdadeiro, e absoluto, teste é impraticável.
Qual seria ele? Seria um imparável movimento de boicote às compras nas lojas do grupo, em todos os lugares, fora do território russo. De certeza que seria bem mais precioso ‘fazer o pão’ para um mercado de 500 milhões de clientes, potenciais, do que a preservar os cento e quarenta milhões de russos.
Verdadeiro e absoluto teste porque, Yves Claude, teria de optar sem vacilar — é que as pessoas (e as nações!), salvo raras excepções, portam-se com decência quando as circunstâncias não lhes permite outra escolha; e, Yves Claude, sem escolha, ficava com a opção facilitada.

No meu entendimento, a decência está além e acima destas 'contas' e, inúmeras vezes, é inconciliável. Falta justificar a «inconciliação», óbvia. Justifica-se pela vileza ‒ a sordície é o nosso património comum. Património comum é a comprovadíssima constatação – explicável pela existência do oposto.
Acresce que a «moralidade» é contingente e, em assuntos desta natureza, inapropriada senão vil.

12/03/2022

Para una revisión de los modelos de resolución de conflictos

        En los análisis de los conflictos internacionales, especialmente los de las guerras, por útiles y necesarias que sean la evaluación de sus causas, de las responsabilidades de los países implicados y de otros factores que les conciernen, se puede omitir un problema básico, la inexistencia de un poder político superior que arbitre entre las partes, tal como lo es el Estado en cada país. A menudo parecería haberse impuesto una resignación ante el fracaso de las Naciones Unidas para cumplir ese papel y, consiguientemente, haberse abandonado la persecución de ese objetivo.
        Muchos conflictos armados, o la guerra actual entre Rusia y Ucrania, por ejemplo, son partes de ese problema mayor, del que depende la seguridad internacional en los próximos tiempos: el del control de la autoridad internacional que, de haberse considerado como destinada a ser ejercida por un organismo, la ONU, al finalizar la Segunda Guerra Mundial quedó de hecho en manos de un solo país –hoy diríamos tres–, con los enormes riesgos que ello implica. Un importante politólogo del siglo XX explicó el significado de esta omisión con palabras que merecen comentarse. Se trata de Norberto Bobbio que, en su Autobiografía, resumió el problema con suma claridad, recordando el fracaso de la Sociedad de las Naciones y de su sucesora, la Organización las Naciones Unidas. “Estamos en la situación – lamentaba Bobbio – de que el supremo poder internacional es ejercido por una de las partes y las Naciones Unidas aparecen totalmente desautorizadas, y por ende privadas de su razón de existir.
        Si se repasa la historia del surgimiento de los Estados nacionales se verá que tiene similitudes con la situación a la que nos enfrentamos, pero con resultado exitoso: la construcción de un poder central capaz de imponerse a los “poderes intermedios” –ciudades, provincias, corporaciones– cuyos conflictos comprometían el orden social. Independientemente de los diversos grados de consenso y de violencia que llevaron a la formación de cada uno de esos Estados, su legitimidad –esto es, la legitimidad de su “monopolio de la violencia”– es base del orden social interno, ese orden que no existe en el plano internacional y que reclama algún tipo de solución similar a la lograda en el plano interno de cada nación. De alguna manera, la apología de la democracia, concepto vinculado estrechamente al tipo de orden social de gran parte de los Estados occidentales, hace más aberrante el actual ejercicio del poder en lo internacional.
Escribía el politólogo Norberto Bobbio que “... en el proceso iniciado a finales del  XVIII para superar la soberanía del Estado nacional con una gradual intensificación de los acuerdos internacionales” se ha producido un retroceso en los últimos tiempos.