02/11/2022

Inflação Secular

As elevadas pressões inflacionistas numa economia pós-pandemia estão a ser impulsionadas, em parte, por tendências e forças seculares, muitas das quais operam no lado da oferta. Embora também existam factores transitórios – como as interrupções e congestionamentos nas cadeias de suprimentos e a política de zero-covid da China – é presumível que estes diminuam em algum momento. Mas as tendências seculares irão provavelmente levar a um novo equilíbrio em muitas economias e mercados financeiros globais. 
Em bens manufacturados e produtos intermediários (uma parte substancial da parte comercializável da economia global), estamos a emergir de um longo período de condições deflacionárias, que tinham sido geradas pela introdução de quantidades maciças de capacidade produtiva não utilizada e de baixo-custo nas economias emergentes. Sempre que houver um aumento de procura, a resposta de equilíbrio do mercado será 
uma combinação de expansão da oferta e aumentos de preços e, nas últimas décadas, a expansão da oferta dominou claramente, criando pressões deflacionárias que passaram a ser tidas como certas. Mas a restante capacidade produtiva sub-utilizada na economia global tem vindo a diminuir e a procura global cresceu à medida que dezenas de milhões de consumidores se juntaram à classe média. 
A elasticidade das cadeias de fornecimento globais diminuiu, aumentando o poder de regateio dos trabalhadores nas economias avançadas. Não é difícil encontrar sinais disso. A organização sindical está a expandir-se e a tornar-se mais bem-sucedida e os empregadores estão a encontrar dificuldades em pôr de lado as preferências de potenciais e actuais funcionários pelo trabalho híbrido.
Depois, há o envelhecimento demográfico. As populações estão a envelhecer – algumas rapidamente – em todos os países que representam mais de 75% do PIB global. Não obstante os aumentos da longevidade, esta tendência implica a redução da oferta de trabalho e o aumento dos rácios de dependência, sem que haja uma redução comparável do lado da procura.
Esses e outros factores estão a alimentar a pressão ascendente sobre salários e custos.
Entre os sectores que enfrentaram problemas extremos de segurança e stress durante a pandemia estão a saúde e a educação, que são grandes fontes de emprego na parte não comercializável de qualquer economia.
Nos Estados Unidos, os sectores da saúde e da educação representam cerca de 34 milhões de empregos, com a saúde a ficar atrás como fonte de emprego. Mas as condições de trabalho pouco atractivas e a baixa remuneração persistiram após a pandemia, levando à escassez de trabalhadores. Ainda não emergiu um novo equilíbrio de mercado; mas, quando acontecer, certamente irá incluir aumentos dos rendimentos daqueles que trabalham nesses sectores e, portanto, um aumento nos custos reais (ajustados pela inflação).
De forma mais ampla, a economia global entrou numa nova era de choques frequentes e graves causados por mudanças climáticas, pandemias, guerras, bloqueios nas cadeias de fornecimentos, tensões geopolíticas, entre outras fontes. Está em curso um processo de diversificação da cadeia de abastecimento e as novas políticas económicas reforçam fortemente esta tendência. Já se foram os dias em que essas cadeias eram construídas inteiramente com base em custos, eficiência de curto prazo e vantagem competitiva. As novas cadeias de suprimentos serão mais resilientes, mas também mais caras.
As tensões geopolíticas são um aspecto especialmente importante desse processo. Os governos estão agora a defender a “estabilidade entre amigos” (“friend-shoring”) por meio de políticas (como taxas, subsídios ou proibições definitivas) destinadas a mudar os padrões comerciais dos seus países para aliados estratégicos e outros parceiros mais confiáveis. Isso é, em parte, uma resposta a possíveis interrupções associadas ao uso crescente de comércio e finanças para obter influência nas relações ou conflitos internacionais. Embora se possam debater os benefícios dessas políticas ao nível da segurança, estas são claramente inflacionistas, pois deslocam as cadeias de suprimentos para longe das fontes de menor custo. De facto, uma versão ainda mais extrema do “friend-shoring” é o “onshoring”, cujos custos são tão altos que as políticas de incentivo só podem ser justificadas em sectores que apresentem vulnerabilidades económicas e de segurança nacional extremas.
Por exemplo, devido à guerra da Rússia na Ucrânia, a Europa adoptou uma diversificação relativamente rápida do sistema energético para acabar com a dependência face aos combustíveis fósseis russos. Esse processo vai levar a custos de energia mais altos a longo prazo – pelo menos até que as tecnologias de energia renovável sejam totalmente implementadas daqui a várias décadas – e a uma pressão inflacionista adicional significativa nos próximos anos.
À medida que o dólar tem vindo a ganhar força, o rápido aumento dos preços das matérias-primas – incluindo alimentos denominados em dólares e preços de combustíveis fósseis – amplificou o surto inflacionista num amplo leque de países. E esse efeito é especialmente forte em países em desenvolvimento com baixos rendimentos, onde alimentos e energia respondem por uma parcela maior da procura agregada e dos gastos das famílias. Muitos desses países já estão a enfrentar escassez de alimentos e energia e uma crise do custo de vida.
Nos EUA, um crescente número de indícios mostra que as indústrias estão a tornar-se mais concentradas, em termos absolutos e em relação à Europa. Podem-se debater as causas dessa tendência – Thomas Philippon, da Universidade de Nova Iorque, atribui grande parte da culpa às falhas da política de concorrência – mas há poucas dúvidas de que a inflação torna a concentração de mercado um problema ainda maior.
A teoria económica diz-nos que, num mercado altamente competitivo, a inflação deve impulsionar a procura por ganhos de produtividade. Mas esse incentivo é silenciado em indústrias oligopolistas, onde as empresas estabelecidas têm uma capacidade aprimorada de repassar os aumentos de custos por via de aumentos de preços que preservam as margens.
Por fim, os níveis de dívida em toda a economia global permanecem elevados desde a pandemia e o ambiente atual de taxas de juros crescentes significa que o espaço orçamental deverá contrair-se. Espera-se que a transição para energias limpas venha a exigir um investimento estimado de três biliões de dólares por ano nas próximas três décadas. Se uma parcela substancial for financiada com dívida, como parece provável, o aumento da procura agregada num ambiente global já restrito à oferta criará uma pressão inflacionista adicional.
Um aumento generalizado da produtividade atenuaria os efeitos combinados dessas pressões inflacionistas. As tecnologias digitais e com base na biologia têm imenso potencial a este respeito. Mas o seu desenvolvimento e implementação vão demorar algum tempo. Até lá não podemos continuar a contar com respostas de oferta altamente elásticas para mitigar as pressões inflacionistas. Os quadros de política orçamental e monetária devem ajustar-se a essa nova e mais difícil realidade.

Michael Spence, prémio Nobel da Economia, professor emérito na Universidade de Stanford, conselheiro sénior no Instituto Hoover e General Atlantic
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